Resenha - Os Óculos de Heidegger

"Em seu livro de estreia, Thaisa Frank mescla filosofia e romance em uma história inusitada. O cenário é a Operação Postal, programa nazista em que um grupo de intelectuais respondia às cartas enviadas aos prisioneiros dos campos de concentração com objetivo de garantir sigilo sobre a Solução Final. Certo dia, uma tarefa é passada pelo próprio Goebbels: responder a uma carta do filósofo Martin Heidegger para seu amigo e oculista Asher Englehardt, prisioneiro de Auschwitz. Diante da suspeita de que talvez a prosaica correspondência contenha algum tipo de mensagem cifrada que poderia desmantelar os planos do Terceiro Reich, os escribas e seus líderes se veem às voltas com o desafio de responder ao filósofo de uma forma que desencoraje uma nova troca de cartas e garanta a permanência tranquila do grupo."
Em Os Óculos de Heidegger, de Thaisa Frank, conhecemos uma realidade acerca da Segunda Guerra Mundial pouco comentada: a Operação Postal. O objetivo dessa operação era responder às cartas escritas pelas pessoas que morreram nos campos de concentração.

É de conhecimento de muitos que Hitler era uma pessoa supersticiosa. Se consultava com astrólogo, participava da sociedade secreta de ocultismo e ditava o rumo da guerra conforme instruções recebidas do mundo sobrenatural. Por causa disso esse projeto foi criado, pois Hanussen acreditava que essas cartas escritas pelos prisioneiros mortos deveriam ser respondidas, caso contrário, os mesmos atormentariam os médiuns em busca de respostas colocando em risco a Solução Final.
"(...) a correspondência com os mortos não fora uma ideia da Sociedade Thule, mas de um vidente. Tratava-se do extraordinário Erik Hanussen, que também era telepata e hipnotizador. Ele havia previsto a ascenção de Hitler ao poder e o ensinou a conquistar as multidões com um simples gesto de mão."
Goebbels, que desprezava tudo o que fosse sobrenatural, decidiu que tais cartas deveriam ser respondidas apenas com a finalidade de manter um registro sobre a guerra e, para que parecessem autênticas, ele decidiu que elas deveriam ser respondidas em suas línguas originais. Dessa forma, a SS procurou entre os deportados, os mais fluentes e cultos para se tornarem escribas. Elie Schaten por pouco não foi enviada para os campos de concentração de Auschwitz, tudo porque ela era capaz de se comunicar em diversas línguas. Dessa mesma forma outros tantos judeus se salvaram e foram enviados para o Complexo dos Escribas para cumprirem essa importante missão.
"Toda carta não respondida (...) era como um tijolo numa construção sem argamassa. Elas deixavam suturas perigosas e criavam lacunas arriscadas na história. (...) Portanto, se o Reich almejava o poder absoluto, deveria responder a todas as cartas possíveis, a fim de preencher aquelas lacunas. Assim a Alemanha vedaria o mundo e conquistaria o domínio global."
O Complexo dos Escribas foi criado no interior de uma mina de carvão abandonada para não levantar suspeitas e era comandado por Gerhardt Lodenstein, alistado compulsoriamente ao SS e feito Chefe do Complexo por Goebbels. A vida dos escribas era muito difícil dentro do complexo. Viviam embaixo da terra sem ver a luz do dia, confinados, com poucos alimentos e agasalhos e com a incerteza de até quando seriam úteis para o Reich e, por conseguinte, seriam mantidos vivos. Elie era a única ponte deles com a realidade, pois era ela quem constantemente trazia novas cartas para serem respondidas, bem como mantimentos para todos sobreviverem.

A vida seguia num ritmo de certa "normalidade" até que uma carta em específico mudou a rotina de todos dentro do Complexo. Numa das idas até o posto avançado, o oficial encarregado entregou a Elie uma carta escrita pelo filósofo Martin Heidegger endereçada ao seu oculista, Asher Englehardt, judeu e prisioneiro de Auschwitz. Goebbels determinou que tal carta fosse respondida por um dos escribas do Complexo da mesma forma que seria por Asher caso ele a escrevesse, e que deveria ser entregue a Heidegger juntamente com os óculos que ele havia encomendado. Caso essa ordem não fosse cumprida, toda a operação poderia ser revelada, assim como a existência dos campos de concentração e das câmaras de gás, e como punição, todos os escribas seriam fuzilados.
"(...) se Heidegger e o judeu ensinavam filosofia, então eles se correspondiam por cartas incompreensíveis. E se escreviam cartas incompreensíveis, ora, segundo a regra estrita de Responder da mesma forma, Heidegger precisaria de uma resposta de alguém que pudesse escrever de maneira igualmente incompreensível."
O grande problema era que a missão imposta aos escribas resumia-se a responder às cartas dos mortos e não dos vivos. Como responder a carta de um filósofo com ideias tão peculiares e uma escrita tão incompreensível? Como se fazer passar por Asher sem levantar suspeitas? Qual dos escribas seria o responsável por uma tarefa tão mortífera? Querem descobrir o que irá acontecer? Leiam e surpreendam-se com o desenrolar da história.

***

Thaisa Frank foi simplesmente magistral ao misturar a realidade com ficção. Eu nunca tinha ouvido falar da Operação Postal, mas ela não só existiu como muitas das cartas foram inseridas ao longo do texto. A Operação parece ser algo tão surreal, principalmente depois que descobrimos a veracidade dos fatos, que torna esse período histórico ainda mais bizarro e repugnante.

O livro é repleto de fatos históricos tão bem narrados que chegamos a ter dúvidas a respeito do que afinal é ficção. Confesso que tive dificuldades de lê-lo por ter pouco conhecimento sobre a Segunda Guerra Mundial e Hitler. Então ia parando e pesquisando alguns fatos, nomes e datas para entender melhor os acontecimentos ali descritos. Para mim a leitura foi muito arrastada. Levei semanas para concluir o livro. Não porque ele é ruim, não, mas porque a narrativa demorou a fluir, é um tanto pesada, densa e melancólica, com vários escritos em outras línguas, principalmente o alemão, que não estão traduzidos, o que dificultou um pouco a minha compreensão do texto.

Depois que a carta de Heidegger chegou ao Complexo foi simplesmente impossível para eu largar o livro. Fiquei muito curiosa para descobrir o que ia acontecer dali para frente e fiquei com os nervos a flor da pele com medo do fracasso da missão. Depois da chegada da tal carta, alguns personagens vão se metendo em várias confusões inacreditáveis, e é absurdo pensar no quanto uma simples carta é capaz de mudar o destino de diversas pessoas.

Fiquei simplesmente tocada com o livro. Gostei muito. Sempre acho que tudo que é relacionado ao período da Segunda Guerra deve ser lido por todos, porque devemos conhecer esse momento negro vivido pela humanidade. Por isso, assim como O Diário de Anne Frank, tenho para mim que Os Óculos de Heidegger é de leitura obrigatória, principalmente para aqueles que, como eu, são fascinados por esse período histórico.

Os Óculos de Heidegger - Thaisa Frank
Editora Intrínseca
288 páginas
Comprar: Submarino

20 comentários

  1. Não conhecia esse livro
    É a primeira vez que vejo em algum blog
    E parece ser bem interessante
    Vou procurar saber mais

    Beijos
    @pocketlibro
    http://pocketlibro.blogspot.com

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    1. Realmente ele foi pouco comentado. Acho que não é do gosto da maioria. Mas eu adorei. Beijos

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  2. fiquei super interessada qdo vc falou antes do livro, agora, certeza que está na minha wishlist!! adorei sua resenha Mi!!

    bjksss
    Ferdy

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    1. Fico feliz que tenha gostado da resenha Fê. Espero que também goste do livro. Beijos

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  3. Mirelle adorei a dica, eu curto muito livros que tem por tematica a 2ª guerra e espero logo ler esse titulo, foi a primeira resenha que li dele e fiquei bem curiosa

    http://felicidadeemlivros.blogspot.com.br/

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    1. Oi Thaila, se você curte essa temática vai adorar esse livro. Eu simplesmente amei descobrir coisas sobre essa Operação Postal. É surreal pensar que isso existiu mesmo. É muito triste. Beijos e depois me conte o que achou.

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  4. Também tenho esse respeito por tudo que aborda a Segunda Guerra. Pelas reflexões, lições de humanidade e todas as questões OBRIGATÓRIAS que são discutidas com esse tipo de material. Um livro que me tocou muito foi "O Refúgio Secreto", da Corrie ten Boom. É um livro essencialmente cristão, mas qualquer um pode ler porque é um relato da autora sobre a sua vida. Todos os acontecimentos descritos são reais. Corrie vivia numa casa com as irmãs e o pai (um velhinho relojoeiro que era um DOCE de pessoa). Ele se compadece dos judeus, abriga vários em um cômodo escondido da casa e a família acaba entrando em um grande esquema para ajudar a salvar essas vidas. Lindo demais! É uma história tão conhecida que virou filme e a casa se tornou ponto turístico. Amei. A sua resenha está ótima - pra variar - e eu achei essa abordagem bem diferente. Nunca tinha ouvido falar em nada sobre a Operação Postal dessa época. Certamente vou adquirir. =D

    OBS: A novidade do dia ficou por conta da J.K.Rowling, hein? Aquela malandrinha pegou todo mundo, hihi.

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    1. Não conheço esse livro/filme Laís. Adorei a dica!! Um livro que aborda um assunto parecido de O Refúgio Secreto é o livro A Menina que Roubava Livros. Você já leu? É lindo demais!! Quero também ler O Diário de Helga, um outro diário real, assim como o da Anne, que relata como foi viver nesse período tão obscuro. Leia Os Óculos, eu adorei essa temática sobre a Operação Postal. Parece que cada vez descobrimos algo novo, né?!
      Nossa, nem me fala sobre a JK, to preparando um post sobre isso agora! Quero ler o livro urgente.. kkk Beijos

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  5. Eu já estava com vontade de ler e nesse momento criei ainda mais vontade, você não imagina o quanto! Sua resenha está perfeita, parabéns! Beijinhos, Thamires. (http://marcaprovisoria.blogspot.com.br/)

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    1. Obrigada pelo carinho querida. Fico feliz em saber. Beijos

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  6. Eu sou aficionado por livros que misturam realidade e ficção de tal forma que você tem facilidade em se perder entre esses dois mundos. Quando isso é somado a um contexto histórico tão ímpar como a Segunda Guerra, e após conferir sua resenha, fiquei totalmente convencido que essa história já está entre minhas prioridades de leitura!
    Também adorei a simplicidade e simbologismo da capa, fantástico.

    Blog DuLapa - www.dulapa.com.br

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    1. Adorei suas considerações Edu, e acho que é exatamente isso que esse livro representa. Espero que goste da leitura, depois me diga o que achou. A capa é linda e a diagramação da Intrínseca como sempre está impecável. Beijos

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  7. Mirelle Candeloro me levando para a filosofia!
    Adorei a resenha, Mi, realmente me convenceu de ler o livro, vai ficar como uma das minhas próximas aquisições, pena que não depende de mim comprar quantos livros eu quiser :( Que lástima, que lástima.
    Não tenho quase nenhum conhecimento acerca da Segunda Guerra Mundial, mas tudo que eu ouço me choca muito. O Diário de Anne Frank foi o primeiro livro que li sobre isso e eu me emocionei bastante. Não fazia ideia dessa Operação Postal, tem milhares de coisas que pelo jeito eu não devo saber. Espero ler em breve.

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    1. Eba!! Eu consegui!! kkkk Brincadeiras a parte, relaxe porque o livro não é filosófico não.. na verdade Heidegger entra na história apenas para representar um papel fundamente na trama, mas não há nenhuma aula de filosofia no livro.. hehe Se você leu e gostou de O Diário de Anne Frank, acho que também irá gostar dele. Só achei a leitura mais densa e arrastada, mas considerando que trata de um período histórico que todos deveriam saber, vale a pena nem que seja para sairmos da ignorância, sabe? Depois me conte o que achou. Beijos

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  8. Agora o papo ficou tendo, o post ficou mais sério então a Greice vai se comportar e escrever sério também!
    Não conhecia esse livro, ando procurando a respeito de livros dessa temática pois tenho uma página com um amigo no face sobre a Segunda Guerra e como estou mais no meio de livros e filmes é sobre isso que falo. Você me ajudou a descobrir mais uma boa leitura, vou compartilhar isso lá na page e vou compartilhar sua resenha também, afinal acho que muita gente se interessa e não lê resenhas porque não sabe nada sobre blogs.
    Adoro o tema da Segunda Guerra, apesar de não ser nada legal, mas tenho interesse em saber mais coisas a respeito e eu inclusive não sabia dessa coisa de Operação Postal, achei muito interessante. Vou precisar ler esse livro, e ver também se consigo pegar na biblioteca O Diário de Anne Frank, que ainda não li, está difícil, o livro não para na estante da biblioteca, todo mundo lê!
    Adorei a resenha Mi.
    Beijooos, Greice.

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    1. Viu só, acho que é a primeira resenha mais séria e adulta que faço no blog, uau, que responsa.. kkk Eu também adoro livros que têm como temática a Segunda Guerra. Acho um período extremamente importante da nossa história e acho que todos devemos saber mais sobre ele, afinal, as histórias só não se repetem quando conhecemos elas, né?! Tenho muita curiosidade de ler o livro que o próprio Hitler escreveu e entender um pouco mais sobre a mente de uma pessoa doente e ao mesmo tempo magnífica que foi capaz de encantar multidões. Queria descobrir os mistérios por trás de Hitler e da guerra, e quanto mais eu leio sobre isso mais assombrada eu fico e mais novidades eu descubro. Nunca vou ser capaz de deixar de me surpreender? O que mais Hitler guardava na manga? E essa Operação Postal me deixou doida, como um projeto desses poderia existir, é ao mesmo tempo fantástico e insano. Legal saber desse seu trabalho Greice, acho muito importante, fique à vontade de comentar sobre o livro por lá. Infelizmente ele foi pouco divulgado. Tem outro chamado O Diário de Helga que é uma história verídica, procura sobre ele. E quando puder leia O Diário de Anne Frank, é uma obra maravilhosa e dolorosa, e um precioso registro histórico sobre as atrocidades que um ser humano é capaz de fazer com o seu semelhante. Beijos

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  9. onde posso encontrar o esse livro Os óculos de Heidegger

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    1. Olá, em qualquer livraria. Inclusive, se você gostar de comprar pela internet, logo no final da resenha há um link de compra dele, do Submarino. Beijos

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  10. Gostei da resenha, também li o livro e gostei muito. Concordo que foi falha da editora não traduzir alguns textos e palavras

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  11. Primeiramente comprei esse livro pelo preço super baixo e pela sinopse. Gosto de história relacionadas a Segunda Guerra, que mesmo com todo o sofrimento, acabam mostrando um lado humano de algumas pessoas. Além de contar fatos reais que não são conhecidos pela maioria das pessoas.

    Como você disse no final da resenha, o início da leitura é meio arrastada mesmo e precisa que a gente pesquise um pouco sobre o Reich, a SS, Goebbels e Auschwitz, caso queira entender melhor a história.

    Os diálogos iniciais são melancólicos e a história é bem parada. Até mesmo as cartas ilustradas nele são bem tristes. Mas depois que chega a carta de Heidegger ao Complexo, a história muda. Você fica realmente tensa e curiosa sobre o final do livro. Com medo do que possa acontecer se alguém fizer algo errado.

    Com o decorrer da história várias pessoas vão se tornando principais nela. Elie, Lodenstein, Asher e o final acaba agradando de alguma maneira, já que poderia acabar pior.

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